Wednesday, February 02, 2005

 

Um espetáculo visual. Mas o que foi que eu vi?

Chego em casa, como porcarias, mais cinco minutos e começo minha leitura de “O Crime do Padre Amaro”, só um pouquinho de TV antes. A seqüência de imagens é estarrecedora: Marília Gabriela posando de paulistana fatal em idade da loba, dezenas de ivetes sangalos se amontoando em uma praia de estúdio, uma delas até exibe o decote que mal deixa antever os seios, lésbicas light pré-fabricadas para atender fetiches mal resolvidos do imaginário nacional, bichas caricatas para disfarçar outros fetiches mal resolvidos do imaginário nacional, um ex-big brother (Big Brother não era o do livro? Ih, não dá tempo de pensar, mais um canal!) dando entrevista sobre alguma coisa, outros big brothers (mas não tem sisters? E o autor do livro, o nome? O-que-Orwell mesmo?) discutindo calhorda e apaixonadamente o próximo paredão – “paredão” virou termo corriqueiro novamente, agora tem uma socialite e aquela gostosa que o Mick Jagger embuchou, as duas fazendo a troca de elogios mais falsamente sincera que um olho humano testemunhou, mais opiniões desconexas sobre o nada em algum canal, cantores da canção nova com slogan de alcoólicos anônimos aplicado aos desvios humanos, o Pedro Bial, propaganda do Mad Maria – veja só que nome, Mad Maria, uma caricatura do Juca de Oliveira (será o próprio?), o seio desnudo da Priscila Fantin (e não podem aparecer as lésbicas?), só em filme de TV que as pessoas trepam debaixo dos lençóis, Cacá Rosset dizendo que Inri Cristo multiplicará pães, o ex-big brother de novo, a socialite falando o que não sabe sobre Rosset, um bigbrother eliminado, uma discípula do falso cristo verdureiro paranaense, ela é linda! uma maria rafaelita em seus mais doces momentos amalgamada ao meu desejo lúbrico interiorano, uma propaganda de alguma coisa, me conformei que nunca vou beijar aquela discípula de 25 anos, várias propagandas de qualquer coisa, será que era o Juca de Oliveira mesmo?, nenhuma imagem para minha imaginação punheteira (ninguém faz oral na TV, é só papai-mamãe), esboço um pensamento, me revolto contra alguma coisa, esqueci aquela coisa em que eu estava pensando, nenhuma imagem para me fazer pensar.

Nisso transcorreu-se uma hora. Ainda não comecei a ler o “padre Amaro”, e nesse ínterim, ao invés da contemplação ao tubo de imagens panteísta, poderia ter aprendido a dançar tango, beber até cair, ojerizar meu salário, rezar, produzir algo que prestasse, seduzir uma das milhares de mulheres que sonhei beijar, conversar com minha mãe, ouvir o disco ainda lacrado do Franz Ferdinand, organizar meus gibis, passear de bicicleta, contemplar as estrelas, dizer a Deus que mesmo eu sendo um chato não gosto de sê-lo, ou agradece-lo por ter recolocado a Ju no meu caminho hoje, escrever cartas, estudar espanhol, preparar aulas, limpar os poros da pele com algodão molhado, reler os mesmos livros pela décima-primeira vez, até mesmo ter começado a leitura do livro do Eça de Queiroz. (George! O nome do Orwell era George – pseudônimo, aliás. O nome era Eric alguma coisa). Mas não. Apaticamente me refastelei ao espetáculo de imagens apalermantes. Mas estou preparado. Que venham as imagens diáfanas (por que eu usei essa palavra?), que venham as imagens, que venha o que vier. Amanhã, pelo menos estarei preparado.

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